Voltar Onde nasceu o Caminho de Santiago

O lugar histórico onde nasceu o Caminho de Santiago
Oviedo é o quilómetro zero do Caminho de Santiago, desempenhando um papel decisivo na consolidação das rotas jacobeias desde a Idade Média.
De todas as qualidades que Oviedo/Uviéu possui, nem sempre foi mencionado o seu estatuto de quilómetro zero do Caminho de Santiago. Para além do célebre dístico medieval- "Quem vai a Santiago / e não ao Salvador / visita o servo / e não o Senhor" -e de relíquias tão controversas quanto enraizadas no imaginário popular, entre as quais se destacam o Santo Sudário ou a hidra das bodas de Caná, ainda hoje é necessário recordar que a capital asturiana desempenhou um papel decisivo no surgimento e consolidação das rotas jacobeias que, desde a Idade Média, atravessaram o noroeste peninsular em busca dos domínios ancestrais do finis terrae.
Um reino em expansão no século IX
Estamos no século IX e o Reino das Astúrias está em plena expansão. O monarca Afonso II, o Casto, tinha transferido a corte de Pravia para Oviedo/Uviéu com o objetivo de aí fundar uma nova Toledo e estabelecer uma sede real cuja fortaleza intimidasse os muçulmanos que dominavam mais de metade da Península. Neste contexto, um emissário do bispo Teodomiro, responsável pela diocese de Iria Flavia, chega à cidade com uma notícia portentosa: num bosque da Gallaecia, um eremita chamado Paio acabava de descobrir um túmulo onde se encontravam os restos mortais do próprio apóstolo Santiago. Não demorou muito para que o rei e os seus homens se pusessem a caminho para ver a descoberta com os seus próprios olhos, dando assim origem ao que foi o primeiro Caminho de Santiago. Pelo menos é o que conta a lenda. A realidade pode ter sido mais prosaica, mas não menos fascinante. Neste contexto, a aparição do corpo de um apóstolo inteiro nos territórios do Asturorum Regnum era uma portentosa manobra política que colocava a um passo dois objectivos: por um lado, unir uma terra onde ainda surgiam de vez em quando pequenas rebeliões e lutas internas; por outro, conseguir aliados no estrangeiro e apresentar-se como um núcleo de poder com o maior dos apoios. A mensagem era clara: se o próprio Santiago repousa sob o nosso solo, é evidente que a divindade nos apoia.
Uma primeira viagem a Santiago entre a história e a lenda
Na verdade, ninguém deixou qualquer registo escrito do caminho exato que o rei Casto e os seus seguidores seguiram. No entanto, parece lógico que tenham percorrido o trajeto da estrada romana que ligava Lucus Asturum (atual Lugo de Llanera) a Lucus Augusti (Lugo) e que aí se ligava à estrada que ia para Bracara Augusta (Braga) passando por Iria Flavia, no que é hoje o município de Padrón na Corunha. Este, pelo menos, foi o trajeto que os que decidiram imitá-lo atravessaram para formar o que hoje conhecemos como Caminho Primitivo. No início não eram muitos: Afonso II limitou-se a ordenar a construção de um pequeno templo funerário no local e a confiar a sua custódia a alguns monges, mas o passar do tempo fez com que o túmulo e todo o simbolismo que continha atraíssem a atenção das massas da cristandade e se tornassem um íman para peregrinos de todo o mundo.
Mas será que Santiago está mesmo enterrado em Compostela? É pouco provável. As histórias que se referem à pregação do apóstolo na Hispânia foram inventadas a partir do século V, e não parece muito credível que os seus discípulos, uma vez mortos, tenham partido do Oriente para a longa viagem de barco que terminaria com os seus ossos na Galiza. As escavações efectuadas sob a catedral de Santiago de Compostela mostraram ao mundo uma necrópole romana, e as leituras mais heterodoxas afirmam que quem realmente dorme o sono eterno sob as suas abóbadas românicas não é outro senão o herege Prisciliano. Seja como for, o que importa é que, ao longo da Idade Média, o Caminho se tornou um formidável transmissor de ideias, correntes e influências que colocavam os reinos peninsulares em constante comunicação com o resto do continente.
O Caminho Primitivo ou a essência primordial das peregrinações
O Caminho Primitivo foi frequentado durante vários séculos como uma das rotas mais seguras para o sepulcro apostólico. Os especialistas em matéria de itinerários jacobeus certificam que, ainda hoje, é o que melhor conservou a essência original das peregrinações. Ao contrário de outros itinerários que, devido à sua popularidade, se tornaram superlotados e, em alguns casos, parecem condenados a morrer de sucesso devido à exploração excessiva, o Caminho Primitivo dá-nos a oportunidade de reviver o recolhimento e a paz de espírito que os peregrinos medievais tinham de embarcar em tempos em que, com cartografia rudimentar e sem truques tecnológicos, mergulhavam em territórios desconhecidos dominados pela beleza e pelo silêncio. Não seremos levianos ao ponto de dizer que pouco mudou desde então, mas vale a pena notar que, em termos gerais, o tempo tem sido bastante respeitador destas terras que, em parte por estarem longe da centralidade contemporânea, souberam manter as suas peculiaridades e souberam fazê-lo.
O Caminho Primitivo começa nas portas da catedral de Oviedo/Uviéu, precisamente no lugar onde uma placa indica que Alfonso II partiu dali, para entrar no sudoeste da comarca por caminhos onde se escreveram algumas das páginas mais memoráveis da história secreta de Astúrias. Desde as primeiras rampas que saem da capital em direção a San Lázaro de Paniceres, e até que se coroa o Alto de El Acebo para depois passar à província de Lugo, os viajantes e peregrinos encontram no seu caminho uma grande variedade de recantos, monumentos e lugares que reconstroem vestígios ocultos do passado. A força medieval da Villa de Grau/Grado, a simplicidade da igreja oculta de La Doriga, a grandeza românica e barroca do Mosteiro de San Salvador de Cornellana, a pompa do túmulo do Inquisidor Fernando de Valdés na Colegiata de Salas ou o complexo monástico de Oubona, tão paradigmático, são alguns dos passos essenciais de uma viagem difícil de descrever apenas com palavras. Atravessar o Puerto del Palo, no cume do qual se celebrou o último convénio documentado em Astúrias; seguir a chamada Rota dos Hospitais, com os vestígios dos antigos restos de assistência aos peregrinos; ou descer em queda livre até à barragem de Salime, sob cujas águas se encontra a memória das aldeias submersas pelo progresso, constitui, mais do que uma simples excursão, uma imersão no murmúrio de uma memória colectiva que só precisa de ouvidos dispostos a escutá-la.
A maior rua da Europa segundo Carlos V
O Caminho Primitivo, declarado Património da Humanidade pela UNESCO em julho de 2015, é um convite à aventura e um apelo a que se ouça a voz de quem somos. O imperador Carlos V disse sobre as rotas jacobeias que elas eram a rua principal da Europa. Johann Wolfgang von Goethe, com a sua solenidade romântica, escreveu que as peregrinações a Compostela tinham consubstanciado uma certa consciência continental. A verdade é que é arriscado fazer descrições monolíticas, porque cada um acabará por ter a sua própria impressão do caminho. O Caminho foi inventado por Afonso II, mas é feito dia após dia por todos aqueles que se atrevem a reconstruí-lo com os seus passos.
Não pense demasiado nisso. Vale a pena o esforço e o mundo inteiro, ou pelo menos aquilo de que realmente precisa dele, cabe confortavelmente numa mochila. O resto também virá ter consigo. Bom Caminho!

Assine nossa newsletter e aproveite as ofertas, descontos e novidades
Subscrever